O ex-governador e hoje
senador Luiz Henrique da Silveira, para artigo publicado no Diário Catarinense de 19 de abril,
elegeu o título “A Capela Sistina, a Torre Eiffel e a Ponta do Coral”. Em
primeiro lugar, é descabida a comparação entre um hotel de luxo como tantos país
afora e obras produzidas em outro período histórico e reconhecidas como
patrimônio da humanidade. Tal comparação fere o método científico e até o mais
elementar bom senso. Como professor de história da arquitetura e urbanismo,
avalio que fazer tal analogia é um insulto intelectual.
Um elemento ignorado no
artigo de LHS, para além da teoria da Arquitetura, é básico: a diferença entre
o público e o privado e o direito à paisagem. Da Torre Eiffel, construída em
1889, vislumbra-se toda a paisagem de Paris, e trata-se de um monumento
público, diferente de um hotel cuja construção implicará apropriação privada de
uma das mais expressivas paisagens de Florianópolis, onde também há um dos
maiores remanescentes do ecossistema de manguezal urbano no país.
Por mais que o
empreendedor do hotel em questão insista, em seu material de divulgação, que
vai entregar à cidade um espaço público, equivalente a 67% da área do projeto e
dependente de um aterro, o fato é que, sem o aterro, o empreendimento é
inviável, porque a área hoje disponível não comportaria um hotel desta
envergadura. Independentemente de como, do ponto de vista legal, a área atual
foi obtida pelos empreendedores, o fato é que o terreno hoje disponível para
construção é de 14.959 metros quadrados, descontando a faixa de área de
marinha, contra 34.646 metros quadrados de aterro. Além disso, o terreno vale
hoje mais de R$ 15.000,00 por metro quadrado, e lá nunca se colocou um centavo
para a melhoria da área. O empreendimento também fere o princípio da função
social da propriedade. Ficou no “pousio” em torno de 30 anos, com o terreno
valorizando-se, e agora o empreendedor quer ganhar com uma renda fundiária sem
correr nenhum risco. Desta forma, é fácil “oferecer” à população o que já é
dela, ou seja, a orla de marinha, os 33 metros de propriedade da União, que são
públicos. O artigo 20 da Constituição Federal diz que são bens da União os
terrenos de marinha e seus acrescidos, como é o caso do aterro.
O artigo de LHS deveria,
sim, fazer comparações com empreendimentos atuais e em contextos semelhantes,
ainda que com reservas, pois a situação territorial, econômica, política e
social de cada cidade ou região no Brasil varia muito. Isso vale ainda mais
para comparações com lugares no exterior.
Quando foi governador, LHS andou por Marbella, na Costa do Sol, sul da
Espanha, e em declarações à imprensa afirmava que Marbella era exemplo de
sucesso empresarial de investimentos em turismo. Esta localidade na costa espanhola
teve um processo de urbanização diferente do da costa brasileira, mas se é o
caso de comparar Marbella com Florianópolis como referência de turismo, então
vejamos o que aconteceu nessa região que foi tão elogiada pelo ex-governador.
Em 5 de agosto de 2007, a Folha de São Paulo publicou reportagem
com o título “Boom imobiliário destrói litoral espanhol” (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0508200701.htm). Um dos trechos: “O maior foco
dessa corrupção é um antigo reduto do jet-set europeu, Marbella, na Costa do
Sol, ao sul do país, onde um prefeito foi deposto em 2002 e seus dois sucessores
estão presos por corrupção e abusos urbanísticos”. Em Marbella, havia 30 mil
casas e apartamentos irregulares. Segundo a reportagem, o governo andaluz tirou
a competência da prefeitura em matéria urbanística por mais de um ano, até que
outro prefeito fosse eleito. Várias prefeituras perderam o direito de legislar
sobre o solo, com intervenções regionais e até do governo nacional. O final do
texto alerta: “Mas os excessos da construção civil e a permissividade de
governos locais ainda servirão por um bom tempo como exemplo do que pode
acontecer com outros paraísos naturais”. O episódio continua vivo em 2013, com
mais prisões, na investigação batizada de Caso Malaya. A rede funcionava com negócios entre grandes empresários, que compravam
terrenos a preços abaixo do mercado ou conseguiam licenças em zonas não
definidas para construção de habitação. Parece que esta situação não é tão
diferente do que nossa cidade sofreu com a chamada Operação Moeda Verde, em
2007.
Outro exemplo usado pelo
então governador era a cidade de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Em 2009, Dubai,
que queria ser “o primeiro destino turístico do mundo”, com seus prédios
gigantescos no deserto e ilhas artificiais em formato de palmeira, afundou na crise. No
final do ano passado, a imprensa noticiou que mais de 3 mil veículos de luxo,
avaliados em até um milhão de dólares, foram abandonados por seus donos,
principalmente no aeroporto, por empresários estrangeiros que perderam tudo na
crise e fugiram do país para não serem presos (http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2012/08/28/carros-de-luxo-de-ate-us-1-milhao-sao-abandonados-em-dubai.jhtm).
Aqui cabe outra
reflexão, sobre o propalado discurso
de geração de empregos nos empreendimentos hoteleiros. No caso da Ponta do
Coral, anunciam que seriam 1.500 empregos diretos. Mas de que tipo? Por qual
salário? Em que condições de trabalho? Aqui vale citar o caso do Costão do
Santinho, outro empreendimento que o agora senador sempre exaltou como exemplo
para o litoral do país. Em março passado, a imprensa também noticiou que o
resort foi fiscalizado por órgãos públicos após denúncia feita pelo sindicato
da categoria (http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2013/03/apos-denuncias-alojamento-de-funcionarios-de-resort-e-fiscalizado.html). Diz o texto: “Segundo os funcionários, os
alojamentos não estão em boas condições. Um dos quartos estava sem energia por
causa de uma infiltração, que também queimou o único ventilador. No banheiro
havia mofo e sujeira. Em outra casa, perto de uma das camas, o chão está
quebrado. No terceiro alojamento, uma fossa a céu aberto foi encontrada”.
Em Dubai, outro
exemplo, o desemprego na cidade plantada no deserto foi às alturas. Em 2009,
reportagem divulgada na imprensa, intitulada “A falência financeira e moral de
Dubai”, relatava:
“As
pessoas que realmente construíram a cidade podem ser vistas em trabalhos
forçados à beira das estradas ou no topo dos mais altos edifícios do mundo, num
calor que os ocidentais não aguentariam mais do que 10 minutos”.
Não se trata aqui de
generalizar esse fato, mas sim de relativizar o discurso de geração de empregos. Que se reflita sobre a vida
e o local de moradia do trabalhador que limpará o banheiro do hóspede da
cobertura do hotel na Ponta do Coral, esse tendo diante de si, sem qualquer
barreira visual, uma das mais valorizadas paisagens da Capital, e aquele, o
empregado, tendo que gastar duas ou mais horas do dia para chegar em casa,
provavelmente fora da Ilha.
Aliás,
este é o modelo de cidade que determinados empreendedores, inclusive das elites
e oligarquias locais, querem para Florianópolis: turismo de luxo ou destinado
para população de alta renda, restando para a população pobre, empregada ou não
nos empreendimentos hoteleiros, ficar fora da Ilha, morando na periferia.
Emprego de qualidade é emprego bem remunerado, com respeito às leis
trabalhistas e condições de trabalho adequadas.
Bem,
comparar toda a complexidade histórica, cultural, arquitetônica e estética que
envolveu a pintura da Capela Sistina, naquele espaço e naquele período
histórico - por um gênio como Michelangelo - com o hotel-prótese na Ponta do
Coral, está além da possibilidade de crítica.
Encantam-se,
os turistas, como consumidores, com Marbella, Dubai, Paris e sua torre Eiffel e
com a Capela Sistina. Florianópolis certamente também é encantadora, mas a imagem
vendida, como “Ilha da Magia”, esconde uma outra face da cidade, a face que é
destituída das condições reais urbanísticas e de infraestrutura, geralmente precárias
e insuficientes. O fato é que as melhores localizações e paisagens cada vez
mais são apropriadas para esse turismo seleto, de alto luxo, e agora avançando
em áreas públicas e até mesmo em solo criado, como o planejado aterro para a
Ponta do Coral. Mas há que se ouvir também aqueles que não vêem a Ilha como uma
mercadoria para consumo, e sim lugar de permanência, um lugar para morar mais
humano e sustentável para todos.
Existem
experiências bem sucedidas de construção comunitária de espaços públicos como o
Parque da Luz, o parque comunitário de Coqueiros, o parque comunitário de Monte
Cristo, o parque cultural do Campeche (Pacuca) que são lugares de encantamento.
Lugares onde o morador e o visitante podem compartilhar a paisagem e o convívio
cotidiano, experimentando a cidade de um ângulo para além da aparência do
consumo turístico.
Há
também várias propostas para a Ponta do Coral, como o projeto do Parque das
Três Pontas, mas que não têm qualquer visibilidade na grande mídia, assim como trabalhos
de conclusão dos cursos de Arquitetura e Urbanismo da UFSC e da UNISUL, somente
para citar alguns, que são contribuições arquitetônicas e urbanísticas para a
cidade. Esses projetos, que devem ser conhecidos, trabalham com o conceito de
paisagem e desenho de uma arquitetura que respeita a topografia local.
A
defesa da Ponta do Coral começou com a comunidade acadêmica do Curso de Arquitetura
e Urbanismo da UFSC nos anos 1980. Também incluíram-se nela iniciativas de
preservação como a do ex-vereador e deputado federal Mauro Passos e agora o
movimento pela Ponta do Coral 100% pública. A mobilização ampliou-se como
símbolo da luta para manter Florianópolis sem segregação social e com sua
paisagem acessível para todos, e não apenas para uso do turismo de alto luxo.
Até
quando haverá beleza e lua vaidosa para o poeta cantar? Deixo a resposta para o
poeta de Desterro, Cruz e Souza:
Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!
Nem precisa desenhar, Cumpadi Plínio.
ResponderExcluir[ ]'s
Grande texto!
ResponderExcluirbelo texto. muito bem construído. parabéns
ResponderExcluirPrezado Vereador Lino Peres,
ResponderExcluirO terreno em questão vale demais e seria de difícil indenização se for considerado como área urbanizável. Nos dias atuais, quando algum cidadão decide comprar uma propriedade, ele é aconselhado a fazer uma consulta para saber se o terreno em questão é área edificandi. Qual seria o valor de um terreno em APP - Área de Preservação Permanente, onde o proprietário não pode construir? O valor monetário é reduzido e o valor ambiental passa a ser avaliado por outros elementos: altas declividades, área de marinha, código florestal, flora e fauna nativas, área especial do sistema viário, por exemplo. Se os proprietários da área fossem pobres mortais a lei já os teria atingido, mas como são poderosos empreendedores imobiliários, são tratados de forma privilegiada. Quantas construções já foram demolidas por se encontrarem em áreas não indicadas para a construção? Cito como exemplo o Campeche. Não se pode falar em indenização quando alguém comprou uma área que pertence à cidade.
Em países civilizados é comum haver doação de áreas para a cidade, muitas vezes com a construção de infra-estrutura e a preservação de parques. Vários exemplos podem ser citados até mesmo no Brasil. Destaco a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, no Morumbi - SP, o Sitio de Roberto Burle Marx, no Rio de Janeiro, o Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi no Morumbi-SP e o Museu Chácara do Céu, no Rio de Janeiro.
Já era tempo de aparecer alguém com poder suficiente para legar à cidade um espaço público natural e cultura: poderia ser a Hantei e quem mais esteja demandando a área.
Abraços,
Sonia Afonso
ARQ/CTC/UFSC
Parabéns pela defesa da nossa ilha!!! Obrigado!!
ResponderExcluirParabéns professor pelo artigo! O LHS quer destruir Florianópolis!
ResponderExcluirArrasou, Prof. Lino!!
ResponderExcluirFiquei muito feliz de ler uma visão tão lúcida sobre a cidade que tanto quero bem. Compartilho, com muito orgulho de ter sido tua aluna e conhecer de perto a paixão com que você defende a qualidade de vida e qualidade arquitetônica e urbanística de Floripa!
Grande abraço,
Juliana Guidi Ourique
Parabéns Professor, texto claro, límpido e até poético!.
ResponderExcluirNão deixa dúvidas: devemos lutar por essa Florianópolis mais justa.